A Carolina de Jesus que não foi “todo rebotalho”, como queria ser lembrada a escritora brasileira (1914-1977), é apresentada em exposição gratuita em São Paulo, até 27/03. Confira imagens, reflexões, uma playlist com músicas da autora e todos os detalhes para planejar sua visita!
Quando morrer
Não digam que fui todo Rebotalho
Que vivia à margem da vida
Digam que eu procurava Trabalho
E fui sempre preterida
Digam ao povo brasileiro
O meu sonho era ser escritora
Mas eu não tinha dinheiro
Para pagar uma editora
Carolina de Jesus
Pois é, a autora teve uma vida muito sofrida até alcançar sucesso com o livro Quarto de Despejo (1960) e muitas vezes foi retratada sob o estigma da ‘escritora negra favelada’. Então a proposta da mostra parte de trechos de seus manuscritos originais que foram apagados das narrativas oficiais, “majoritariamente por autores homens e brancos”. A afirmação é da equipe de curadoria, ao comentar sobre a importância do livro Um Brasil para os brasileiros.
Assim como parte do conteúdo, o título original foi alterado para Diário de Bitita (edição em Português, de 1986). Por isso, o nome da exposição no Instituto Moreira Salles (IMS) é Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros. O objetivo, em justa homenagem, é mostrar ao público a voz e a escrita originais de Carolina.
Mostra resulta de ampla pesquisa e conteúdo inédito

Portanto, a exposição percorre a produção literária da autora, abordando história, recepção, amplitude e complexidade da sua obra. Isso porque grande parte dessa produção está em cadernos manuscritos ainda nem publicados.
Quarto de despejo, em que relata seu cotidiano na favela do Canindé, em São Paulo, foi seu livro de maior sucesso. Mas a autora também lançou em vida Casa de alvenaria (1961), Pedaços da fome (título original era A felizarda– 1963) e Provérbios (1963).
Depois foram publicados Diário de Bitita (1986) e outras edições independentes reunindo textos seus. Além disso, Carolina escreveu poemas, crônicas, peças de teatro e letras de música, a maioria também inédita.
Narrativa visual mostra uma Carolina altiva

A narrativa visual da exposição sobre Carolina de Jesus no IMS não poderia ser diferente. Uma vez que os visitantes também verão fotografias pouco conhecidas, com Carolina sorridente, elegante e altiva. Isso porque estas imagens mostram uma artista diferente daquela normalmente retratada pela imprensa à época, humilde e cabisbaixa.
Então um bom exemplo é a foto dela no Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas (SP), momentos antes de embarcar para o Uruguai. Essa viagem foi em 1961, para o lançamento de Quarto de despejo (foto destacada).
Ao mesmo tempo, obras de outros artistas que dialogam com Carolina também integram a exposição. Foi à convite da equipe de curadoria que o artista Antonio Obá criou um novo retrato de Carolina, o Meada, um dos destaques da mostra.
A seleção tem nomes que viveram no mesmo período da autora, como Heitor dos Prazeres (1898-1966) e Maria Auxiliadora (1935-1974). Mas também inclui contemporâneos, como Ayrson Heráclito, Dalton Paula, Eustáquio Neves, Paulo Nazareth, Rosana Paulino, Silvana Mendes, Sonia Gomes e o coletivo Encruzilhada.
Reflexões sobre maternidade e outros talentos da artista

A maternidade é outro assunto recorrente na obra de Carolina, que foi mãe solo de três filhos, trazendo reflexões que reverberam nas discussões atuais. Por isso, a mostra traz um núcleo dedicado ao tema, com imagens da autora com os filhos, incluindo três fotos raras do seu arquivo pessoal.
Mas o que muita gente não sabe é que Carolina de Jesus também compunha canções, cantava, tocava violão e costurava. Assim, Quarto de despejo também foi o nome de um LP, lançado em 1961, com doze faixas de sua autoria, que pode ser ouvido pelos visitantes.
Ouça playlist com canções de Carolina de Jesus
Algumas composições de Carolina de Jesus integram uma playlist, com o total de 28 canções. Mas a coletânea também reúne produções da época do lançamento de “Quarto de despejo”, (1960), como o disco Bossa Negra, de Elza Soares, e Macumba, de Heitor dos Prazeres.
Inclui, ainda, músicas em que a autora é citada ou homenageada, principalmente no rap, por meio de Larissa Luz, Luana Hansen e outras. Quem preparou essa seleção especial foi o curador de música do IMS, Juliano Gentile. Ouça, a seguir!
Carolina de Jesus: “ícone de um Brasil insubmisso”
Além disso, vídeos e trabalhos presentes na exposição reforçam o impacto da obra da artista na atualidade. Mas a exposição também conta com atividades paralelas, como uma mostra de cinema e um catálogo com textos críticos. A curadoria da mostra Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros é do antropólogo Hélio Menezes e da historiadora Raquel Barreto.
Carolina tornou-se um símbolo de resistência para os movimentos negros contemporâneos. Referência para vertentes do feminismo negro, para a literatura de autoria negra e periférica. Um ícone de um Brasil insubmisso, que colocou em cheque um projeto de modernidade excludente, que era moldado quando a autora lançou seu primeiro livro.
Hélio Menezes e Raquel Barreto, curadores da exposição
Você também pode gostar de ver conteúdo do IMS sobre a vida e obra de Carlos Drummond de Andrade.
Alguns pensamentos de Carolina Maria de Jesus
Eu odiava o senhor José Afonso por dizer que o vovô seria o Sócrates Africano, se soubesse ler. Mas não podia xingá-lo, porque ele era o presidente de Sacramento. E os que xingavam o presidente iam presos e apanhavam. Pensava: se o vovô fosse branco e rico, o senhor José Afonso havia de considerá-lo. Mas o vovô era preto e o preto não era o dono do mundo. […] Fiquei feliz em saber que o meu avô morreu ilibado. O seu nome, Benedito José da Silva. E tenho orgulho de acrescentar que ele foi o Sócrates analfabeto. Era impressionante a sapiência daquele homem.
(Trecho proveniente do manuscrito Um Brasil para os brasileiros, sob a guarda do IMS.)
Dia 24 de fevereiro de 1941 saiu o meu retrato na Folha da Manhã. Na foto estava eu e o sr. Willy Aureli. Eu estava sorrindo e ele me olhando. O que achei interessante é que as pessoas que se dirigiam a mim com intimidades passaram a tratar-me de Dona Carolina Maria de Jesus.
(Trecho proveniente do manuscrito Um Brasil para os brasileiros, sob a guarda do IMS.)
“Eu gosto de ser preta”
Eu não tenho complexo de cor, eu gosto de ser preta. Se Deus enviasse-me branca creio que ficava revoltada. Quando leio nos jornais ‘Carolina Maria de Jesus, a preta da favela’, fico contente. Favela é lugar dos pobres, é a manjedoura da atualidade. Cristo nasceu numa manjedoura, se renascer será numa favela. O recanto dos que não podem acompanhar o custo de vida.
(Trecho proveniente de manuscritos do Arquivo Público de Sacramento.)
O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.
(Trecho proveniente do livro Quarto de despejo.)
Quando eu voltava parei em uma banca de jornais. Vi um homem xingando os policiais de burros, que eles prevalecem. No Clichê, um policial espancava um velho. O jornal dizia que era um policial do Dops.
(Trecho proveniente do livro Meu estranho diário.)
Fiquei pensando na vida horrorosa do povo do Brasil. E eu também estou no meio desse povo.
(Trecho proveniente do livro Meu estranho diário.)
A vida não é para os covardes!
(Trecho proveniente do livro Provérbios.)
Onde, quando e como ver a exposição sobre Carolina de Jesus
EXPOSIÇÃO: Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros QUANDO: De 18 de setembro de 2021 (abertura) até 27 de Março de 2022 (prorrogada). De terça a domingo e feriados (exceto às segundas), das 12h às 18h. Os horários podem sofrer alterações devido à pandemia, consulte antes de ir. ONDE: No IMS Paulista, à Avenida Paulista, 2424, São Paulo (SP). COMO: A entrada é gratuita, mas é necessário agendar antes no site. MAIS INFORMAÇÕES: (11) 2842-9120. PROTOCOLOS DE SEGURANÇA: O IMS Paulista está funcionando com capacidade reduzida. É obrigatório o uso de máscaras, manter o distanciamento entre as pessoas, entre outras medidas. |
Referências: Texto da exposição sobre Carolina de Jesus redigido pela jornalista Michele da Costa, com informações e imagens do IMS. Trecho destacado no início do texto integra manuscritos do Arquivo Público de Sacramento. Foto destacada: Carolina Maria de Jesus, em Campinas (SP), em 13/12/1961, crédito Arquivo/ Estadão Conteúdo.
A história de dessa mulher, negra, pobre e, finalmente, escritora é uma lição de vida. Lutou como muitos, mas se sobressaiu ao traçar seu caminho ainda criança.
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Oi Regina! Bem-vinda de volta! Verdade. Como Carolina de Jesus mesma disse, “A vida não é para os covardes!”. Bjs
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